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Notícias da Diocese › 09/10/2019

A esquerda e a direita na dualidade política do catolicismo

Recorrer ao diagrama binário esquerda-direita como grelha analítica no processo de compreensão das declinações políticas do movimento católico tem vantagens e desvantagens (Reprodução/D.R./ 7 Margens)

Por Pedro J. Silva Rei*
7 Margens

Por que razão, numa sociedade secular, continuamos a falar de uma “monocultura política” dos católicos à direita? Terão os católicos à esquerda entrado numa “espécie de clandestinidade”, como sugere Tolentino Mendonça?

Mesmo assumindo que, nas sociedades contemporâneas, política e religião constituem “domínios de sentido e ação analiticamente distintos”, as relações entre os dois universos ganham particular acuidade quando apreciamos o carácter compósito de cada um deles. Sempre que pretendemos observar o catolicismo em perspectiva histórica, somos tentados a delineá-lo de forma homogênea – um corpo orgânico e organizado institucionalmente – em detrimento das especificidades e rupturas que o integram mediante a dinâmica relacional dos seus grupos, com sensibilidades e mundividências próprias. Do mesmo modo, quando decompostas as orientações políticas dos católicos, na maioria das vezes, confinamos a sua espiritualidade a uma mera intervenção social, desconhecendo a horizontalidade da crença e sociabilidade religiosas que sustentam, e na qual radicam, tais orientações.

Ao contrário do que é vulgarmente assumido, no quadro do catolicismo a associação entre comportamentos religiosos e políticos não se compreende exclusivamente do ponto de vista institucional, mas antes no âmbito simbólico e antropológico que aquele compreende. Além das intervenções políticas da hierarquia, e da grelha canônica que os enquadra, a equação entre o religioso e o político deve ser ponderada a partir do entendimento que a estrutura de pensamento religioso desenvolve em “correlação entre verdade, autoridade, liberdade e consciência” a partir das quais o sujeito crente estima a sua presença na sociedade.

Muitas vezes confundindo conceitos como catolicismoIgreja Católica e católicos, ao assumirmos a doutrina da Igreja Católica como único critério para aquilatar a orientação política dos católicos, tendemos a uniformizar este universo univocamente em torno da documentação produzida oficialmente. Porém, a prática de vazar a experiência política dos católicos, como um todo em bloco, nas orientações institucionais não só se revela inoperante, porque incapaz de atender o carácter heterogêneo daquele domínio, como, não menos importante, reflete um parecer redutor do mesmo: tendendo a aquartelar o laicado a uma cadeia de transmissão das diretivas episcopais. Com efeito, se é verdade que tais intervenções, não lhes sendo indiferentes, são reveladoras da atitude institucional em relação às forças políticas em jogo e aos temas em debate em determinado contexto, o que é certo é que o processo de politização e compromisso político dos crentes não decorre forçosamente de uma lógica de persuasão hierárquica, antes da significação e das mundividências que o religioso – além do institucional – fornece. (Donegani, 1993, 70).

Longe de se consagrar como uma geografia unívoca, o catolicismo é marcado por divisões internas, com princípios de estruturação distintos. De acordo com Jean-Marie Donegani, sem negar as nuances que as caracterizam, poderíamos agrupar a diversidade de opiniões dos católicos no contraste dual de duas tendências intelectuais próprias das dinâmicas religiosas, em torno das quais os crentes se agregam ou excluem, mutuamente, a partir de concepções díspares de diferentes problemáticas de âmbito filosófico, teológico, pedagógico e espiritual.

A vida cristã, produto de uma tensão

Assim, considerando a tensão entre estes dois núcleos transversais ao âmbito religioso, não é indiferente que no seio do catolicismo cada tendência procure expressar a totalidade da mensagem inscrevendo-a num desses polos: prefigurando a partir de categorias inerentes da tradição cristã, distintos dispositivos de consciência e atitudes face ao processo histórico, a partir dos quais as opções teológicas se alargam ao campo político (Donegani, 1993, 110.) Uma tensão bipolar que, sugere Étienne Fouilloux, funciona como um elo de uma cadeia intelectual de maior amplitude cronológica onde a dinâmica religiosa se entende em torno de conflitos episódicos distintos de um mesmo debate: “entre ce qui est de Dieu et ce qui est de l’homme, ce qui est de la grâce et ce qui est “du monde”” (entre o que é de Deus e o que é do homem, o que é da graça e o que é ‘do mundo’). No qual a vida cristã se compreende como produto de uma tensão que se declina em diferentes binômios consoante as épocas históricas (Fouilloux, 1971, 72.)

Neste sentido, o parcelamento político dos católicos – divisão que inviabiliza, por si, a formação de um partido católico que abranja a totalidade daquele universo – deve ser equacionado com a mundividência religiosa que professam, percebendo o grau da sua correspondência. O mesmo é dizer que a fragmentação política do movimento católico decorre de uma divisão a montante que exprime uma antinomia na forma de compreensão dos postulados da crença e da vivência dessa identidade no exercício da cidadania.

Com este ensaio, por meio das reflexões produzidas pela historiografia francesa, propomos-mos revisitar os principais eixos de diferenciação nos quais o catolicismo contemporâneo se divide, equacionando a possibilidade de os subsumir num esquema de interpretação binário: a dualidade esquerda-direita.

O pluralismo político como consequência de diferenciações religiosas

Sobre a questão de saber se os conflitos religiosos não seriam um “epifenômeno das oposições sociais e políticas que sozinhas teriam realidade e substância” ou, se pelo contrário, a causa das oposições políticas não residia “nessas diferenças permanentes e fundadoras entre as opções morais e teológicas”, Étienne Borne fornece um primeiro incentivo para relançar a problemática ao secundarizar a questão da repartição dos católicos no campo político, para se debruçar na equação do pluralismo político do catolicismo contemporâneo a partir das diferenciações religiosas que lhe são características (Borne, 1965, 13.)

Da mesma maneira, consciente da diversidade interna do catolicismo francês, René Rémond equacionou a possibilidade de o analisar com a ajuda das categorias direita-esquerda, emprestadas do campo da ciência política – sinalizando que “a opinião católica não é unânime em França em nenhum dos principais problemas colocados pela organização da sociedade moderna” e estimando, justamente, que a múltipla diversidade encontrada “é o traço mais característico e marcante do catolicismo francês. […] já que essa multiplicidade de opiniões está agrupada em torno de núcleos relativamente coerentes”. (Rémond, 1958-b, 807.)

Além da verificação da existência da diversidade interior ao universo católico vazado no político, é necessário, portanto, equacionar o processo como essa variedade desencadeia mecanismos e princípios de divisão interna naquele âmbito – isto, uma vez que o catolicismo não se determina apenas pela diversidade que lhe é característica, mas também pelas divisões que provoca, as quais não deixam de opor entre si aqueles que, no entanto, se reivindicam mesma pertença confessional. Como, aliás, René Rémond demonstra ao notar o confronto contrastante de opiniões e comportamentos que atravessam o catolicismo francês em redor das grandes problemáticas sócio-políticas da França contemporânea: “Na maioria das vezes, nas divisões políticas e sociais, os católicos pensam que estão a agir de acordo com o próprio espírito do Evangelho […]. Quase sempre pensam que assumem uma posição que está de acordo com a sua fé.” Ou seja, uma vez divida no âmbito político e social a opinião católica está também dividida em questões propriamente religiosas, nas quais se estabelecem (Rémond, 1958-b, 808.)

Se os movimentos e correntes espirituais do catolicismo não são ideologicamente neutros e, segundo este autor, se podem “classificar de direita e esquerda”, essa categorização não decorre exclusiva ou, particularmente, de escolhas políticas e sociais propriamente ditas, mas antes de sistemas de pensamento e opções religiosas que as antecedem e justificam – avaliando, por essa forma, a existência de devoções de direita e de esquerda, “a partir de preferências que nem circunstâncias históricas nem considerações de política religiosa justificam completamente as razões mais profundas de afinidade entre uma forma particular de santidade e essa atitude geral em relação ao mundo” (Rémond, 1958-b, 808.)

Uma tensão bipolar em torno de clivagens filosófico-teológicas

É no plano conceitual que cada uma das tendências em causa se opõe primeiramente, apoiando-se cada uma delas em concepções distintas de verdade e de razão. Por um lado, numa primeira linha a verdade é percebida como uma unidade invariável e integral, fixa no tempo independentemente da conjuntura histórica e da reflexão humana. Logo, concebendo a verdade como um sistema unívoco e total, em virtude da qual se estrutura, posteriormente, a divisória inelutável entre o bem e o mal, e a partir da qual a liberdade humana se pondera numa alternativa de adesão ou rejeição. Em sentido inverso, numa segunda tendência, a problemática da verdade é equacionada não em razão da sua imutabilidade histórica, mas, antes, da possibilidade da sua descoberta gradativa pela inteligência humana. Nessa acepção, mais que uma preocupação apriorística com a coerência de um sistema de revelação, a verdade apreender-se-á a partir das aspirações da natureza dos sujeitos históricos e das experiências vividas nas quais, progressivamente, se revela. (Rémond, 1958-b, 804.)

Consequentemente, cada um destes postulados configura duas maneiras antinômicas de interpretar a história: se por um lado o primeiro eixo concorre para uma interpretação fixista da história, purificando a verdade de qualquer historicismo e compreendendo a transitoriedade sequencial e concordante dos acontecimentos a partir da dimensão sobrenatural, onde reside o seu princípio hermenêutico; em alternativa, na posição oposta, ao assumir a verdade como como um caminho de discernimento gradual, a transitoriedade dos acontecimentos históricos é avocada como componente favorável no contexto da revelação, assumindo a complexidade compósita das realidades humanas.

Um diferendo filosófico de onde procedem, portanto, duas concepções distintas no plano pedagógico e apologético: por um lado, uma primeira tendência empenhada em conservar e transmitir os ensinamentos catequéticos a partir da sequência lógica do système dogmatique; por outro, procurando, no processo de transmissão, adaptar a comunicação e compreensão dos mesmos postulados consoante as realidades e contextos em causa (Rémond, 1958-b, 804-806)

Ainda assim, é no plano teológico-espiritual que estas duas primeiras nuances alcançam o seu fecho, consolidando-se teoricamente ao assumir estruturas diferenciadas, e enunciados distintos, a propósito das relações entre o natural e o sobrenatural, a transcendência divina e a liberdade humana. Na verdade, no âmbito teológico, a primeira tendência que acompanhamos ao valorizar a transcendência em detrimento da imanência procura sublinhar a fragilidade pecadora da condição humana diante do divino, dando corpo à estruturação de uma corrente espiritual de referência escatológica (Donegani, 1993, 107.)

Esta, difundida na França da II Guerra, exprime uma resposta pessimista do cristianismo contemporâneo face à angústia do homem, à hecatombe da Guerra, ao insucesso do progresso histórico e a uma técnica descontrolada. Na prática, orientada para a contemplação mística em detrimento da ação, a espiritualidade escatológica reafirma uma religiosidade de desapego e evasão do crente face à vida terrena, recusando qualquer cedência e acomodação ao mundo (Rémond,1958-b, 805.)

Entre a indiferença e o compromisso

De maneira oposta, a segunda vertente inverte a hierarquia precedente antepondo a imanência à transcendência no trilho do dogma da encarnação e da fenomenologia da ação de Maurice Blondel – reafirmando a vocação humana no projeto divino, ao acentuar da responsabilidade e protagonismo da humanidade enquanto colaboradora da criação.

Ao contrário da primeira, a espiritualidade da encarnação, como é qualificada, soleva a problemática do agir e da liberdade do homem na história, na consciência de que o cristão, não indiferente ao devir da humanidade, deveria exercer a sua missão por meio de um compromisso responsável com o mundo através da ação. Deste modo, incrementada progressivamente desde a década de 1930 por meio dos organismos da Ação Católica, esta orientação espiritual assume uma visão positiva sobre a transitoriedade da história e do progresso humano sem negar, porém, a realidade transcendente do mistério do homem (Donegani,1993, 106-107).

Como resultado, oscilando entre a indiferença e o compromisso, estes dois complexos teológico-espirituais configuram duas índoles comportamentais distintas no que respeita à atuação dos crentes face ao universo político e na forma como projetam as relações entre o espiritual e o temporal, a Igreja e a sociedade.

Portanto, se o primeiro filão, definido pelo desprendimento e indiferença face ao mundo, suscitaria o apolitismo dos crentes no quadro das instituições políticas e sociais instituídas. Em contrapartida, a segunda tendência, ao estimular o interesse dos sujeitos pelos acontecimentos históricos, responsabilizando-os pelos problemas sociais em curso, potenciaria e favorecia formas de militância crente nas estruturas políticas, afirmando-se, por contraste ao anterior, ao refutar a sua tríplice característica: “son manichéisme, concordisme, et juridisme”. Posições em virtude das quais a relação da Igreja face à sociedade se entende de forma diferenciada: se na esteira do primeiro filão esta não se poderia adaptar ao mundo, nem condescender com os seus “erros”, mas, ao invés, seria o mundo que teria a obrigação de se acomodar às normativas definidas por daquela, reconhecendo os seus direitos na sociedade. O segundo advogaria uma posição mais dúctil no que respeita ao ajustamento da Igreja no mundo, às suas sentenças face aos homens e ao discernimento da repartição do bem e do mal, abandonando o anátema em prol do diálogo (Rémond,1958-b, 807.)

A dualidade do catolicismo em clivagens de ordem social e política

Sem embargo, mesmo se este primeiro princípio de clivagem se faça em torno de duas perspectivas teológicas dispares é possível reconhecer nesse âmbito algumas das tendências que cruzam o campo político, o que Jean Donegani qualifica “da psyché de direita à psyché de esquerda”: o conflito entre pessimismo e optimismo em relação à natureza humana; a crença, ou não, no progresso da humanidade e o progresso irreversível da consciência; a vontade transformadora e o descompromisso perante a organização social (Donegani, 1993, 116).

Neste sentido, a fim de analisar a porosidade entre os universos religioso e político torna-se necessário articular esta primeira polarização com um segundo princípio de estruturação das mentalidades religiosas no qual a vinculação com o domínio político se torna mais evidente: a dissociação das mentalidades hierárquica-hierática com aquela democrata-progressista, proposta por Maurice Montuclard. As quais vão dar corpo, desde o final do século XIX, não só à clivagem entre catolicismo liberal, catolicismo social e democracia-cristã, mas, sobretudo, à dissociação política destas duas últimas correntes (Montuclard,1965, 14).

Porquanto, se por um lado a mentalidade hierárquico-hierática defende uma organização societária verticalizada no desempenho da autoridade, patrocinando a imutabilidade da ordem estabelecida e o imobilismo das formas sagradas. Por outro, a vertente democrata-progressista caracteriza-se pela oposição que trava à verticalidade e à imutabilidade consagrada na primeira tendência ao assumir a mudança social como postulado numa coerência progressiva de melhoramento das sociedades: “a estabilidade da ordem sendo tradicionalmente assegurada de cima, é inevitável que o progresso seja realizado de baixo.” (Montuclard,1965, 208).

Equacionadas a partir do estudo das grandes correntes políticas que se confrontaram no terreno católico desde a década de 1890, a categorização feita por Montuclard permite não apenas reflectir a dinâmica social dos grupos, tendo em conta o modo como cada um deles assimila e re-exprime os postulados eclesiásticos readequando o conteúdo teórico e prático recebido de acordo com os dados da sua experiência sócio-cultural mas, paralelamente, enriquecer a problemática em questão uma vez que a sua análise se debruça explicitamente sobre a ordem sócio-política. Impondo-se como categoria, na medida em que patenteia não apenas uma polarização espiritual no seio do universo católico mas uma polarização política das atitudes religiosas: equacionando o facto da formação de posições políticas distintas arreigarem não só em distintas pertenças sociais, mas, mergulhadas no caldo das sub-culturas católicas, nas diferentes mundividências de pensar o religioso (Montuclard, 1965, 216).

Destarte, convirá recuperar a dualidade analítica de Jean Milet, segundo o qual o cristianismo se estrutura como uma religião bipolar em torno de duas concepções antropológicas distintas: o teocentrismo e o cristocentrismo. Manifestando, por esse modo – ora referenciando-se à figura de Deus ora a de Jesus Cristo – diferentes concepções de autoridade e de ordem com prolongamentos consequentes nos domínios político e social (Milet, 1980, 257).

A este respeito, escreve Jean-Marie Donegani: “A autoridade sacral e paterna enaltecida na fé teológica é substituída no cristocentrismo por uma autoridade fraterna cujo início heróico, no entanto, não frustra o propósito de compartilhar e servir. […]. Por um lado, um sistema de responsabilidade hierárquica no qual será cultivada a ordem imutável e a paz, fruto dessa ordem; por outro, uma lógica de fraternidade a ser conquistada sobre a submissão, a liberdade de obter contra a ordem.” (Donegani,1993, 125).

A dualidade política do catolicismo à luz do binómio esquerda-direita

Tendo isto em conta, René Rémond assume a conveniência da utilização do diagrama binário direita-esquerda como instrumento de observação do universo católico contemporâneo, sem que este se torne uma figura de estilo extemporânea ao método analítico. E infere, a esse respeito, discriminando dois catolicismos desiguais nas dimensões política e ética: “Formulado em termos políticos, com a ressalva de resumir à política o que é primeiro e sempre permanece religioso, a situação ideológica do catolicismo […] aparece dominada por dois movimentos de sentido contrário. Por um lado, uma lenta evolução de fundo, em grande parte espontânea, que é tanto fruto da experiência quanto da reflexão, envolve uma parte das elites e dos quadros do catolicismo, intelectuais, militantes operários, líderes de organizações, para posições de destaque à esquerda. Por outro lado, decisões sucessivas de autoridade estão gradualmente a reforçar uma tendência conservadora, até reacionária, que apenas uma década atrás parecia estar à beira da extinção (Rémond, 1958-b, 820).

Não obstante, segundo o mesmo autor, para que a distinção esquerda-direita seja operativa na compreensão da cultura católica deverá corresponder a oposições internas ao universo propriamente religioso da qual provém, articulando o enunciado desta oposição sócio-política àquela sua precedente no âmbito filosófico-teológico – uma vez que, se a clivagem encarnação-escatologia remete para a compreensão diferenciada da verdade e da história na lógica da revelação e da salvação, a oposição hierárquico-hierática à democrata-progressista está relacionada com o compromisso do crente com a ordem social e com os princípios políticos que definem a sua conservação ou transformação. De acordo com René Rémond:

“Em nenhum deles o ponto de vista político é primário ou principal: as preferências políticas não orientam a escolha das escolas filosóficas, são as opções filosóficas que levam a inclinações políticas. […]. Essa descoberta é de maior importância para um estudo do catolicismo de direita e do catolicismo de esquerda. Manter-se […] em posições políticas é pousar o olhar na superfície das coisas: inseparável de uma concepção definida das relações entre as duas ordens, elas são inexplicáveis sem ela.” (Rémond,1958-b, 808).

O trânsito do religioso ao político

Em contexto de disputa eleitoral, esta reflexão não tem o propósito de pôr um ponto final na problemática em questão ou dirimi-la, mas, ao invés, subsidiar um debate que tem pautado o campo católico nas últimas semanas. Fizemo-lo, ao trazer à liça os contributos de um punhado de historiadores franceses que sugerem a interpretação das clivagens políticas dos católicos a partir das mundividências religiosas e da dualidade que as atravessa. Na verdade, pretendemos tão só perceber aquilo que António Matos Ferreira considera ser o “trânsito do religioso ao político” nas sociedades seculares, e como nesse trânsito se pode equacionar a viabilidade da aplicação de um esquema binário importado das ciências políticas – esquerda-direita – na análise do universo católico.

Como qualquer outra metodologia, recorrer ao diagrama binário esquerda-direita como grelha analítica no processo de compreensão das declinações políticas do movimento católico tem vantagens e desvantagens. Se por um lado, corremos o risco de diluir o religioso no político ao tratar as problemáticas religiosas a partir de uma conceptualização política feita pelo modelo liberal, sob o paradigma de separação que induz, e esbatendo o carácter unitário e institucional do catolicismo em virtude das suas fragmentações e grupos. Por outro, o binômio esquerda-direita continua operacional no que respeita à caracterização da diversidade política que trespassa o catolicismo contemporâneo, não podendo ser negligenciadas as diferenças que estes dois polos fornecem e surtem nos comportamentos dos católicos, tornando-se pertinentes quando os sujeitos históricos os assumem enquanto referencial de sentido e militância.

Especificamente, quando tentamos averiguar o movimento católico contemporâneo partir das interações que estabelece com o terreno político, longe de expressar uma orientação unidirecional, as distintas direcções que assume manifestam a importância de cada uma das determinações políticas e a maleabilidade das expressões religiosas. Quer isto dizer, que o pluralismo político dos católicos significa e induz, a priori, um determinado grau intestino de diferenciação religiosa, sendo a fragmentação política enquadrada teoricamente por destintas formas de percepção e de vivência dos axiomas de crença que professam – correspondendo cada um deles, em muitos aspectos, a princípios de polarização política. O que obriga, consequentemente, a redefinir a lógica objectiva e jurídica da pertença eclesiástica dos sujeitos crentes como único critério de observação daquele universo, e assim arriscar sondar outras categorizações e formas de pertença e significação como critérios igualmente operativos no estudo do referido objecto – instâncias nas quais a identidade religiosa se desenvolve, matiza e assume, valorando a diversificação de protagonismos que implica.

Portanto, ao procurarmos observar o processo de politização dos católicos, mais do que esgotar a análise na filiação político-partidária dos indivíduos, não podemos descurar os referenciais teológicos, filosóficos e espirituais que, de forma mais ou menos consciente, as antecedem e determinam. Pois estes surgem como uma primeira arquitetura intelectual sobre a qual a militância política se estrutura, considerada como instrumento e dinâmica de transformação societária. Na prática, o campo político constitui um terreno de ação onde se exercitam e recompõem os pressupostos e preposições da crença.

Neste sentido, as coordenadas políticas esquerda-direita, sempre que empregues para caracterizar a militância e o compromisso político dos católicos, não só não perdem o seu carácter ideológico como constituem referenciais de pertença, adesão ou rejeição. Porém, mais do que ponto de partida, estas categorias figuram como ponto de chegada do trânsito acima referenciado: na medida em que, no percurso de politização dos católicos, as clivagens político-ideológicas que os diferenciam ganham sentido naquelas teológico-filosóficas que atravessam o catolicismo contemporâneo, e não fora delas. Levando-nos, por fim, a considerar a porosidade entre os campos político e religioso no modo como ambos se influenciam reciprocamente: presumindo como o político “molda a experiência religiosa e como esta condiciona a percepção do político e da atuação (intervenção) dos católicos na sociedade.” (Ferreira, 2011, 11).

Bibliografia utilizada

BORNE, Étienne (1965). «Le catholicisme» in Forces religeiuses et atitudes plotiques dans la France contemporaine. Paris : Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, pp. 9-25

DONEGANI, Jean-Marie (1993). La liberté de choisir. Pluralisme religieux et pluralisme politique dans le catholicisme français contemporain. Paris : Presses de la Fondation nationale des Sciences politiques.

FERREIRA, António Matos; ALMEIDA, João Miguel (2011). Religião e Cidadania. Protagonistas, Motivação e Dinâmicas Sociais no contexto Ibérico. Lisboa: CEHR, 2011.

FOUILLOUX, Etienne (1971). «Une vision eschatologique du christianisme : Dieu vivant (1945-1955)» in Revue d’histoire de l’Église de France, 1971, pp. 47-72.

MILET, Jean (1980), Dieu ou le Christ ? Lés conséquences de l’expansion du christocentrisme dans l’Église catholique du XVIIe siècle à nous jours. Paris : Trévise.

MONTUCLARD, Maurice (1965). Conscience religieuse et démocratie. La deuxième démocratie chrétienne en France, 1891-1902. Paris : Le Seuil.

RÉMOND, René (1958-a). «Droite et gauche dans le catholicisme français contemporain I.» in Revue française de science politique, (1958-09)vol. 8 : n°3, p.529-544.

___, (1958-b). «Droite et gauche dans le catholicisme français II» in Revue française de science politique, (1958-12) vol. 8 : n°4, p.803-820.

 

 

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