Washington Luiz Maciel Cantanhede
Em 1722, segundo Bernardo Pereira de Berredo e Castro, em seus famosos Anais Históricos do Estado do Maranhão, escritos em 1723 e publicados em 1749, as margens do Mearim, por ele considerado o príncipe soberano de todos os rios da Capitania do Maranhão, estavam povoadas somente a cerca de dez léguas de sua boca e com menos de setenta moradores. A região já sediara seis engenhos de açúcar de grosso rendimento e ainda conservava três naquela época, embora “de pouca utilidade, por falta de fábrica, desamparados todos os mais dos senhores deles por sobrado receio do gentio de corso”.
Apesar da existência precedente da igreja de São Lourenço, do Convento de Na. Sra. das Mercês, erigida à margem do rio anos antes, foi somente em 1723 que a Metrópole reconheceu oficialmente uma igreja no Mearim, construída recentemente.
No ano anterior, D. Frei José Delgarte, quarto bispo do Maranhão, comunicara a El-Rei D. João V que “José da Cunha d’Eça, fidalgo da Casa Real e Capitão-mor que fora da mesma Capitania, se resolvera a abraçar o estado eclesiástico, pelo que lhe conferira as ordens necessárias e o persuadira, visto possuir bens de fortuna, a levantar uma igreja na Ribeira do Mearim, onde já existiam 500 almas privadas de sacramentos, ao que o dito padre atendera não só edificando a igreja como também dotando-a de um curral de gado, meia légua de terra, quatro escravos e mais abegoaria necessária e paramentos suficientes de três cores, naveta, turíbulo, caldeirinha e sino”.
Por isso, El-Rei mandara admiti-la ao seu real padroado, e confirmava o referido padre como seu prelado, consignando-lhe a côngrua anual de 50$000 réis. Fizera isto através da Resolução Régia de 18 de março de 1723.[1]
Nascia, assim, com a nova igreja, a Freguesia da Ribeira do Mearim, fator de aglutinação populacional naquela época de intenso fervor católico – um templo e o respectivo vigário, que até então não existia, para cuidar das quinhentas almas privadas de sacramentos que, em sua maioria, viviam dispersas por toda a região que margeia o baixo curso do referido rio.
Edificada a igreja e dotada de curral não muito distante, em lugar desde logo conhecido como Curral da Igreja, tudo em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré, em 1734 já recebia a visita do Pe. João Rodrigues Covette, no período de 8 a 16 de novembro, em que foram ouvidas, aproximadamente, trinta pessoas, previamente notificadas, num procedimento inquisitório referente a práticas de concubinato, “amancebamento” e “ilícita amizade” de moradores do Mearim. A primeira testemunha a ser ouvida foi o vigário Pe. Joseph de Morais Pimenta. Ao final, os culpados foram punidos com admoestações, prometendo “emenda”, como filhos da Igreja.[2]
Em 1752, de 14 a 17 de janeiro, recebeu a visita do bispo D. Fr. Francisco de Santiago, ocasião em que foram ali crismadas 335 pessoas.[3]
Nesse ínterim, pela primeira vez, a Coroa Portuguesa preocupava-se verdadeiramente com a administração civil dos seus interesses na Ribeira do Mearim, região do Maranhão já habitada por muitos colonos. Pela Provisão de 10 de março de 1747, Dom João, Rei de Portugal, fizera saber ao ouvidor geral da Capitania de São Luís do Maranhão que aprovara sua solicitação, datada de 15 de setembro de 1743, para que se criasse em cada um dos distritos da Parnaíba, das Aldeias Altas e do Mearim “hum juiz ordinário com seu escrivão e meirinho”, declarando: “(…) por ser conveniente ao serviço de Deus e mais útil a meus vassalos, sou, outrossim, servido que nos ditos rios Mearim e Pinaré tão somente se crie de novo um juiz ordinário com seus oficiais escrivão e meirinho, por ser muito de se virem aqueles moradores a essa cidade e os juízes dela irem àqueles rios a negócios de justiça, devassas de mortes e roubos cometidos nos ditos rios, tanto pelo longe e perigos do mar, como pela dificuldade de condução e gastos para eles de canoas e remeiros, pelo que se vos ordena façais as ditas criações e divisões na forma apontada nesta minha ordem” – [com atualização ortográfica e pontuação que não consta no original].[4]
Trata-se da criação do Julgado do Mearim, o marco inicial da emancipação político-administrativa e da história da Justiça em terras da Ribeira do Mearim. Essa circunscrição administrativa e judiciária não tardou a ser instalada e documentos da época dão conta de que desde sempre tinha sua sede em lugar diverso da sede da freguesia. Esse novo lugar outro não era senão o denominado de Vitória, que, praticamente, nasceu juntamente com a instalação do julgado.
Prosseguia a vida tranquila daqueles colonos católicos na última quadra do Século XVIII, agora divididos em dois pequenos povoados, a sede da freguesia, com sua igreja matriz, e a do julgado, com seu juiz ordinário para decidir sobre pequenos litígios e dar providências de ordem administrativa. A consistência do local onde estava sediada a freguesia era, entretanto, desfavorável à permanência do templo ali, em razão do problema secularmente evidenciado: terreno baixo e alagadiço e que, por isso, não resistia à fúria das enchentes e à erosão decorrente do fenômeno, que provocava a queda das barreiras, destruindo até ruas inteiras. Já a sede do Julgado era imune às enchentes, por ser mais alto.
Passando de uma geração para a seguinte, chegou até os nossos dias o relato oral de que, por causa dessa impropriedade do terreno, foi o projeto da freguesia abandonado ali onde se iniciara e decidiram-se os moradores a procurar outro local para a igreja e o povoado que, naturalmente, em torno dela novamente cresceria. A propósito, César Marques, no Dicionário Histórico-Geográfico da Província do Maranhão (1870), precisamente no verbeteMearim (Vila), registrou ter encontrado na Vila da Vitória, quando nela esteve em 1865 e 1866, a seguinte narrativa oral, feita pelos mais idosos moradores: “A primeira vila foi assentada no lugar chamado Sítio Velho entre o curral da igreja para a parte de baixo e o Bonfim para cima, à margem esquerda do rio. Aí existiu a primeira igreja, e foi a sede da freguesia”.
Com algumas modificações fantasiosas, essa é a tradição oral vigente até hoje.
A decisão sobre a mudança da sede da freguesia teria partido do governador do Maranhão, Joaquim de Melo e Póvoas, segundo a narrativa ouvida por César Marques. Contava-se que, visitando o lugar e vendo sua impropriedade, o governante encarregara o alferes de cavalaria Félix Mendes de Faria, filho de Alcântara, de comandar a transferência para um lugar adequado. Então, este escolheu o lugar atual, distante do primitivo quatro léguas pelo rio e duas por terra.
Comprova-se hoje, em parte, a narrativa oral colhida por César Marques. Presta-se a isso uma carta do provedor-mor da Fazenda Real no Maranhão, Henrique Guillon, datada de 25 de setembro de 1776, endereçada ao rei de Portugal, D. José I, “sobre a necessidade de construção de uma nova igreja na Freguesia de Nossa Senhora de Nazaré, na Ribeira do Rio Mearim”.[5]
Na carta, o Provedor lembra que Sua Majestade, mediante resolução, tomada em consulta do Conselho Ultramarino de 1723, mandara admitir ao seu real padroado a igreja matriz daquela freguesia, erigida e dotada de patrimônio por José da Cunha d’Eça. Em seguida, expõe o dito Guillon como evoluíra a situação da igreja e de seu patrimônio até aquela data, concluindo por apontar a necessidade de uma nova igreja para a Freguesia, pois se achava totalmente arruinada a que existia, carente de ornamentos decentes e prestes a afundar, porque as enchentes do rio, pelo tempo do inverno, vinham cabalmente diminuindo a faixa de solo em que fora erguido o prédio. Por isso – acrescenta –, a requerimento dos moradores, fora pessoalmente à Ribeira do Mearim, onde examinara com eles lugar capaz para sediar uma nova igreja, construção com a qual alguns moradores já haviam principiado a colaborar, cedendo materiais. Por tudo isso, propunha a edificação do novo templo, à custa da Fazenda Real.
Assim, restou comprovada a tradição oral, com algumas modificações, é verdade, mas abonando definitivamente o que até agora era dito sem lastro em fontes históricas primárias.
Seguiu-se a construção da nova igreja. Agora na sede do Julgado do Mearim, o Arraial da Vitória. Sabendo-se que o seu teto ainda era de palha em 1827, quando sofreu um incêndio (relato de César Marques, hoje confirmado por documentos da Arquidiocese de São Luís, localizados no Arquivo Público do Estado), conclui-se que até então era uma construção precária, vale dizer, inacabada.
De 1776 em diante, consolidou-se o Arraial da Vitória (nome presumivelmente adotado para lembrar o êxito do novo sítio da povoação), cuja manutenção e crescimento dependiam de igreja e pároco por perto, o imprescindível socorro espiritual com que os moradores poderiam contar. Afinal, a Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré já estava em nova sede, a salvo das enchentes que inviabilizaram a sua permanência na parte mais baixa do Rio Mearim.
Nesse povoado que, depois de emancipado em 1833, seria a atual cidade de Vitória do Mearim, perduraria, até esse ano, o Julgado do Mearim, quando foi extinto.[6]
A partir da criação do Município de Vitória do Mearim (1833) e até a posse do atual pároco, Pe. Isaac Góis (março de 2017), a Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré teve, essencialmente, à sua frente os seguintes párocos: no século XIX, José Lourenço Bogea e João Emiliano do Lago; no século XX, Eliud Nunes Arouche e Sergio Ielmetti. Os últimos párocos, já neste século, foram Franco Manetti e João Batista.
A igreja de Nossa Senhora de Nazaré, matriz da paróquia de mesma invocação – até meados dos anos 1970 pertencente à Arquidiocese de São Luís do Maranhão, e desde então integrante da Diocese de Viana –, é um templo localizado de frente para o Rio Mearim, no centro antigo da cidade de Vitória do Mearim.
Incendiada em 1827, reconstruída, em pedra e cal, e reformada aos poucos, principalmente mediante esforços financeiros da própria comunidade católica ao longo de quase cem anos, quando o Padre Eliud Nunes Arouche aqui chegou para entregar a sua vida em prol deste povo, ele a entendeu ainda inacabada.
Até fins dos anos 1800, o templo foi o principal cemitério da região. Naquele século e no Século XX, a construção sofreu várias alterações na fachada e no seu interior.
A Lei Orgânica do Município de Vitória do Mearim, de abril de 1990, determinou que a igreja matriz de Nossa Senhora de Nazaré e o seu anexo fossem tombados como patrimônio histórico-cultural do Município. Mas nenhum instrumento de proteção a esse tão valioso bem cultural existia até 1999. Foi quando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) procedeu ao inventário arquitetônico do templo e dos objetos sacros do seu interior, datando-os, na medida do possível, e descrevendo-os tecnicamente, além de fotografá-los e codificá-los em numeração integrada ao conjunto dos bens da mesma natureza existentes no Brasil. São mais de cinquenta itens com grande valor histórico, dada a sua antiguidade, e/ou valor artístico, dados o esmero com que foram criados ou o estilo de arte a que se filiam.
Por decreto do poder executivo municipal, editado no dia 21 de abril de 2017, em atendimento a solicitação que pouco antes lhe fizera a Academia Arariense-Vitoriense de Letras, com a aquiescência da Paróquia, esse conjunto foi tombado pelo Município de Vitória do Mearim, que, dessa forma, assumiu, ainda que apenas formalmente, as responsabilidades que lhe competem quanto a essa matéria.
Daqui a apenas 5 anos, completar-se-ão, portanto, 300 anos de existência da Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré, a quinta mais antiga do Maranhão, superada apenas, nesta ordem, pelas de Nossa Senhora da Vitória da Sé Catedral (São Luís), do Apóstolo São Matias de Tapuitapera (Alcântara), de Nossa Senhora da Conceição da Vila de Santa Maria do Icatu (Icatu) e de Nossa Senhora do Rosário do Rio Itapecuru (Rosário).
________________________________________
[1] MARQUES, César. Dicionário Histórico Geográfico da Província do Maranhão. verbete Mearim (Freguesia).
A Resolução foi lançada, por simples despacho, como frequentemente acontecia, no frontispício de parecer do Conselho Ultramarino acerca da consulta originada da comunicação do Bispo. Limita-se à expressão “Como parece”, seguida de local (“Lisboa Ocidental”) e data (“18 de março de 1723”), e encerrada pelo autógrafo real. Esse documento consta do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal), hoje à disposição para consulta, em meio digital, nos arquivos públicos do Brasil, e também pela Internet (AHU-ACL-CU-009, Caixa: 13, Doc.: 01352, 1722.dezembro.15). Foi reproduzido em CD-Rom, no âmbito do Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, desenvolvido pelo Governo da República Federativa do Brasil, e está catalogado em: BOSCHI, Caio C. Catálogo dos manuscritos avulsos relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa). São Luís: Funcma/AML, 2002. Página 69.
[2] Autos de Visitação feita no Rio Mearim, Freguesia de Na. Sra. de Nazaré (1734), pelo Revmo. Pe. Visitador João Roiz Covette – Arquivo Arquidiocesano de S. Luís-MA/Arquivo Público do Estado.
[3] Livro mais antigo de registro de batismos da Paróquia de Na. Sra. de Nazaré (1744-1773), consultado pelo autor em 1998, hoje desaparecido da Secretaria da Paróquia de Vitória do Mearim.
[4] AHU-ACL-CU-009, Caixa: 29, Doc.: 03002, 1747.março.10. CD-Rom. BOSCHI, Caio C. Catálogo dos manuscritos avulsos relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa). São Luís: Funcma/AML, 2002. Página 130.
[5] AHU-ACL-CU-009, Caixa: 50, Doc.: 04898, 1776.setembro.25. CD-Rom. BOSCHI, Caio C. Catálogo dos manuscritos avulsos relativos ao Maranhão existentes no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa). São Luís: Funcma/AML, 2002. Página 206.
[6] Proclamada a Independência do Brasil e outorgada pelo Imperador D.Pedro I sua primeira Constituição, foram, pela lei de 17 de outubro de 1827, criados os juízos de paz para as freguesias e distritos e, pelo Código de Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de 1832, efetivamente extintas as figuras dos juízes ordinários e vintenários, passando a existir, além dos juízes de paz, os conselhos de jurados, os juízes municipais e os juízes de direito.
Na esteira da reorganização judiciária do País, determinada pelo Código de Processo, em 19 de abril de 1833 o Conselho Geral da Província do Maranhão criou, entre outras, a Vila do Mearim, instalada a 7 de janeiro de 1834. O Conselho, em sessão de 29 de janeiro de 1834, nomeou, dentre listas tríplices elaboradas pela Câmara Municipal da Vila do Mearim, para juiz municipal o vereador João Duarte Dornelles, e para promotor público João Francisco Serejo.
Iniciava-se, então, uma nova etapa do processo histórico, no qual as funções executivas e judiciárias (e também as legislativas) do Estado passaram a ser exercidas separadamente, processo que nos conduziu ao que hoje vivemos.