INTRODUÇÃO
O tema do V Theotókos quer nos ajudar a refletir sobre o papel de Maria na História da Salvação. Este tema certamente é fruto da inspiração do Concílio Vaticano II que na Constituição dogmática “Lumen Gentium[2]” (Igreja, Luz das Nações) trata exatamente sobre a Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, o seu mais eminente membro.
Por “História da Salvação” compreende-se todo o processo de livre iniciativa divina de vir ao encontro da humanidade por meio de pessoas, acontecimentos e palavras, revelando-lhe seu plano de amor e sua vontade de salvar a todos. Esta história de Salvação que começa com a criação, assume uma forma concreta a partir de Abraão e Moisés, passando pelos profetas e Sábios (Antigo Testamento) até a sua plenitude em Jesus de Nazaré, o filho de Maria, o Cristo de Deus, conforme testemunha o Novo Testamento.
Assumindo essa perspectiva histórico-salvífica, o Concílio insere o mistério de Maria na totalidade do Mistério de Cristo e da Igreja, sem perder de vista a relação constitutiva e essencial da Mãe com o Filho, mas também sem separar a Virgem da comunidade da qual ela é membro excelente e, ao mesmo tempo, tipo (membro ideal, imagem perfeita da Igreja), modelo (exemplo) e mãe.
Essa finalidade, declarada já no proêmio do cap. VIII da Lumen Gentium (LG 52-54), é claramente reconhecível nas duas partes nas quais o texto deste capitulo se estrutura: a primeira (55-59) apresenta a mariologia bíblica, sublinhando a progressiva e plena união de Maria na perspectiva da economia da salvação; a segunda (60-68) trata da relação entre Maria e a Igreja e entre a Igreja e Maria. A conexão das duas partes é reafirmada na densa conclusão do capítulo (69).
“Querendo Deus, sumamente benigno e sábio, realizar a redenção do mundo, «ao chegar a plenitude dos tempos, enviou Seu Filho, nascido de mulher… para que recebêssemos a adoção de filhos » (Gl 4, 4-5). «Por amor de nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo poder do Espírito Santo no seio da Virgem Maria[3] » (LG 52)
O concílio, recorrendo com abundância ao testemunho da Escritura, sem forçar os textos e assumindo a perspectiva concreta da narração, fala de Maria como peregrina na fé e como primeira discípula do Senhor. Desse modo, também a sua figura de mulher e a sua experiência humana adquirem relevo novo, correspondente à sensibilidade antropológica da renovação teológica de nosso tempo.
Enfim, há uma clara intenção pastoral ao falar de Maria, orientada para apresentar eficazmente a Virgem Mãe como tipo da Igreja, modelo para sua vida de fé e para a sua ação de caridade e de testemunho. É como diz a canção:
“És tu, Maria, o espelho vivo no qual a Igreja deve olhar para, na história, realizar o querer do Pai.
És tu, Maria, o exemplo fiel de como a Igreja deve ser: sinal de fé, justiça, amor, verdade e paz”.
Algumas figuras e imagens no Antigo Testamento foram interpretadas pelo cristianismo como tipologia de Maria, a Mãe de Deus, a mulher que participa no processo de salvação do povo de Deus. Veremos apenas algumas dessas imagens que preparam a chegada de Maria.
No relato do paraíso depois da “queda” de Adão e Eva (Gn 3), a promessa de salvação vem expressa em termos que anunciam uma certa aliança entre Deus e a mulher (Gn 3,15). A inimizade colocada entre a serpente tentadora, isto é o espírito do mal, e a mulher, significa de fato que daquele momento a mulher agirá como aliada de Deus.
A mulher, Eva, tinha sido a primeira a ceder ao tentador, a comportar-se como “amiga” da serpente e inimiga de Deus. E eis que ela é destinada a tornar-se a primeira inimiga da serpente, a primeira amiga de Deus. Há uma surpreendente reviravolta da situação, devida à potência divina salvadora. O episódio do primeiro pecado mostra a que ponto o papel primordial reconhecido à mulher na aliança é proveniente do favor gratuito de Deus.
No oráculo Deus prenuncia a punição da serpente; a sanção deve ser eficaz em razão da soberania divina. Além do mais, segundo a reviravolta da situação que o oráculo quer provocar, a serpente deve ser punida por aqueles que foram as suas vítimas no drama do pecado: a mulher e o homem. A estirpe da mulher conserva um significado misterioso. Provavelmente designa um descendente masculino[4] (como faz a versão grega dos Setenta mudando o pronome para o masculino: ele), que deverá reparar a derrota de Adão e que com a sua vitória sobre a serpente abrirá à humanidade um novo destino.
Convém sublinhar que em Gn 3,15 o homem é considerado como descendente da mulher e isto confirma o papel atribuído à mulher na luta com o tentador. A designação é ainda mais significativa quando se recorda que pouco antes (Gn 2) a mulher tinha sido apresentada como “tirada do homem”. Na perspectiva da salvação que deverá restaurar a criação, o homem será considerado como “saído da mulher”.
Quanto à mulher, ela vem designada de modo genérico. Muito se discutiu para saber em que sentido se poderia reconhecer uma alusão a Maria. Existe uma espécie de projeção da figura da mulher no futuro, tanto que Eva desaparece em “virtude da mulher escatológica e messiânica”. Eva tinha representado a mulher envolvida no pecado; Deus inverte a situação fazendo da mulher a primeira representante da luta contra o demônio.
A bênção divina aos patriarcas para que tenham uma descendência, diz respeito antes de tudo às suas mulheres, Sara, Rebeca, Raquel, que se tornam mães graças a uma intervenção divina. Esta prioridade da mãe a receber a bênção que deve favorecer essencialmente seu filho, manifesta um princípio no desígnio salvífico: o descendente escolhido por Deus, aquele que prepara o grandioso destino do povo, é dado em virtude de um favor excepcional acordado à sua mãe. Assim, antes de tudo, é afirmada a hostilidade entre a mulher e a serpente, antes que seja mencionada a vitória do filho descendente.
Na mulher do protoevangelho se delineiam, deste modo, os traços de Maria, mas esta constatação pode ser feita somente sucessivamente por aqueles que conhecem o conto da Anunciação. No oráculo não é indicada a particular identidade de uma mulher, mas um novo papel assinalado à mulher. Deus quis fazer da mulher a sua aliada na luta contra o espírito do mal e quis atribuir a esta mulher a maternidade daquele que deveria trazer a vitória final.
AS MULHERES QUE SALVAM O POVO
Entre as figuras bíblicas de mulheres nas quais se pode reconhecer um certo anúncio a Maria destacam-se duas, em particular, Judite e Ester. Nos dois casos a mulher desempenha uma função decisiva para a salvação do povo, de tal modo que podem ser consideradas como uma expressão vivente da aliança que liga Deus ao destino de Israel.
Os livros de Judite e de Ester não são históricos. Não se trata de uma história real, mas de uma história ideal, na qual se cumpre uma extraordinária vitória sobre o inimigo na qual a mulher assume a responsabilidade.
No livro de Judite, o general da armada assíria, Holofernes, aparece como personificação das potências do mal. Diante da potência do invasor, Judite “a judia”, representa a fidelidade a Deus, uma fidelidade que guia a sua resistência ao inimigo, enquanto os chefes do povo já decidiram render-se. A sua confiança em Deus, expressa na sua oração, lhe permite cortar a cabeça de Holofernes usando a espada dele. Na sua vitória há uma espécie de reedição da luta de Davi contra Golias, mas aqui é uma mulher que salva o povo, em contraste com a incapacidade e a virilidade dos chefes.
Nos hinos de louvor e de reconhecimento que lhe são dirigidos, Judite é considerada como a glória da raça judaica (Jt 15,9), abençoada por Deus mais do que todas as mulheres que vivem sobre a terra (13,18). Uma vez que é o Senhor que não somente confirmou o que ela havia feito (15,10), mas que a conduziu na sua missão (13,8), justamente se percebe nela a manifestação de uma aliança de Deus com a mulher.
Também no livro de Ester se encontra o retrato de um inimigo implacável do povo hebreu: Amã, intendente do rei persa Assuero, decreta o extermínio dos judeus. Para escapar do perigo, Mardoqueu indica a Ester, que se tinha tornado rainha, como devia comportar-se. Ela intercede junto ao rei, obtém a revogação do decreto de extermínio e a condenação de Amã. A mudança de situação que conduz Mardoqueu ao poder, permite aos judeus de dominarem os seus inimigos.
Diferentemente de Judite, Ester não cumpre atos de guerra. Aquilo que se destaca é a sua intercessão, poder de intercessão próprio da mulher. Em Judite, o poder de sedução da mulher serviu para matar o inimigo; em Ester, ao invés, este poder obtém o favor do rei. Enquanto Judite assegura a vitória sobre o adversário através dos meios empregados por ela mesma, Ester aparece, sobretudo, como uma mediadora.
Deve-se notar que tanto uma quanto a outra arriscaram a sua vida. Evidentemente essa missão carrega em si um sacrifício pessoal.
É preciso citar ainda os dois oráculos enigmáticos que anunciam uma maternidade messiânica (Is 7,14; Mq 5,1-2).
MARIA NO NOVO TESTAMENTO
O testamento bíblico sobre Maria é marcado pela sobriedade e pela densidade. Por um lado, ele é todo marcado pela relação com o desenvolvimento mais geral da elaboração dos textos do Novo Testamento. Por outro lado, ele revela, desde os inícios, a estreita conexão entre o mistério da Mãe e a totalidade do mistério do Filho. A sobriedade nos convida a renunciar a qualquer vida de Maria que pretenda reconstruir sua figura histórica em pormenores; a densidade testemunha que tudo que é dito dela na Escritura é marcado e filtrado pela experiência pascal dos primeiros testemunhos da fé. Faz-se necessário, portanto, buscar no anúncio a história e na história o anúncio.
Em outras palavras, no centro do Novo Testamento está a boa notícia de que Jesus de Nazaré é o Cristo, o Filho de Deus, é o Senhor (Mc 1,1; Jo 20,31; Rm 1,9, etc.). Todo o resto deriva desta realidade fundamental ou está a ela relacionado. Apresentando Jesus, Boa Nova do Pai, o Novo Testamento nos fala também de sua mãe, Maria de Nazaré. Portanto, para conhecer a mulher escolhida de Deus para ser a mãe de seu Filho, nós temos nestes textos as fontes mais antigas e mais seguras. Mais ainda, ao apresentar Maria, os evangelistas querem nos ensinar algo sobre ela, sobre sua missão na história da salvação e a sua importância para nós, os discípulos do Senhor do século XXI.
Cada evangelista acentua traços particulares de Maria e a maneira como ela acolheu a sua tarefa:
O texto paulino que faz referência à mulher da qual nasceu o Filho de Deus é o mais antigo testemunho do Novo Testamento concernente a Maria. O testemunho é antiquíssimo, cronologicamente muito próximo do primeiro início do movimento cristão, metade dos anos 50. Trata-se da Carta aos Gálatas, capítulo 4.
A análise do texto mostra a sua perspectiva histórico-salvífica: Deus, o Pai, enviou seu Filho “quando chegou a plenitude do tempo”. Essa expressão não indica apenas cumprimento cronológico (chrónos), mas exprime muito mais a densidade escatológica do evento (kairós): há amadurecimento e progresso da história da salvação, chegados ao ponto culminante (cf. Mc 1,15; At 1,7; Hb 1,1; 1 Tm 4,1; 1Cor 1,8; Rm 2,5). O cumprimento e o novo início, próprios da hora escatológica, são manifestados pela ideia da plena participação do Enviado, de um lado, no mundo da preparação e da espera – nascido da mulher, nascido sob a lei – do outro, do novo início do mundo, devido a ele – “para remir os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial”.
Em seus conteúdos, Gl 4,4 quer testemunhar a reviravolta da história, o novo início do mundo realizado pelo envio do Filho: a referência à mulher da qual ele nasceu, na sóbria acentuação da verdadeira pertença dele ao humilde mundo dos homens, no tempo da espera, coloca também a mulher no lugar mais próximo do cumprimento escatológico como a criatura mais próxima do coração do mistério, do centro escatológico da história. Com Paulo tem início a união da mariologia com a cristologia, pois afirma-se ali a maternidade divina de Maria e o significado histórico-salvífico deste fato.
CONCLUSÃO
O papel de Maria na História da salvação pode ser visto a partir de três aspectos. O primeiro é o resgate que Maria, mulher pobre do povo de Israel, fez da figura feminina na história da humanidade, imagem decaída desde a mulher de Gn 3. O segundo é a sua relação singular com Deus: amada, escolhida, eleita para ser a Mãe do Verbo Encarnado, mas ao mesmo tempo, livre e disponível, é a mulher do sim e do serviço. O terceiro é resultado dos dois anteriores, o que ela significa para nós. Em relação a nós ela modelo de fé, é Mãe por obra de Deus, é intercessora por causa de seu amor e é guia no caminho que conduz ao Reino de Deus, onde ela foi acolhida e coroada como Rainha. O que Deus fez com Maria, quando ela acolheu a sua proposta de amor, é o que Ele quer fazer conosco se o acolhermos. O que Maria fez, como resposta ao amor de Deus, é o que Ele espera de cada um de nós. Com efeito, ela, nossa mãe nos ensina: “Fazei tudo o que Ele vos disser! ” (Jo 2,5).
Por tudo isso Maria é, como diz a Lumen Gentium VIII, “sinal de Esperança certa e de consolação para o povo de Deus peregrinante”.
“A Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há de consumar no século futuro, assim também, na terra, brilha como sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor (cfr. 2 Ped. 3,10)”. (LG 68).
BIBLIA DE JERUSALEM, Paulus, São Paulo: 2002
BROWN R. E., The Birth of the Messiah. Doubleday, London: 1993
DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMENICO VATICANO II, 4ª edição, Paulus, São Paulo:2007
MURAD Afonso., Maria toda de Deus e tão humana. Compêndio de Mariologia. Paulinas, São Paulo: 2012
STOCK K., Maria, la madre del Signore, nel Nuovo Testamento. ADP, Roma: 1997
[1] Este texto, feito a pedido de Dom Sebastião, bispo de Viana, é resultado de vários artigos sobre Mariologia no Jornal do Maranhão da arquidiocese de São Luis – MA. Autoria de Pe. Flávio Colins.
[2] O capítulo VIII da Constituição Dogmática sobre a Igreja é totalmente dedicado a Maria.
[3] Credo Niceno-Constantinopolitano.
[4] É um oráculo que aponta para Cristo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, destruindo assim a morte e vencendo o diabo por meio de sua cruz redentora.